Artigo derivado de uma comunicação apresentada na 2a. Semana de Letras Neolatinas - Relações Culturais e Plurilinguismo, Faculdade de Letras UFRJ, 21 a 25 de outubro de 1996, e publicada na revista Estudos Neolatinos 2, 1997, p. 372-379. Adaptei as referências iniciais do texto ao momento presente, uma vez que o original foi elaborado ainda no período de vida do escritor mexicano.
por
Maria A. Silva
Entre os escritores pertencentes à geração do famoso boom hispano-americano de fins dos anos '50, Carlos Fuentes foi talvez o único a ter conseguido acompanhar, de maneira coerente e dinâmica, o curso das transformações literárias e culturais da metade final do século passado. Isto se deveu, em grande parte, à inserção definitiva de suas obras ficcionais e ensaísticas no quadro comum das problemáticas estéticas compartilhado pela quase maioria dos escritores, em âmbito mundial, nas últimas décadas. A consciência cada vez mais clara de que as questões literárias entroncam, necessariamente, com a ideia de tradição — originária, no contexto hispânico, dos trabalhos de Unamuno, Ortega y Gasset e Alfonso Reyes —, levou Fuentes a adotar um revisionismo permanente, cuja meta é conferir maior universalidade ao pensamento crítico hispano-americano, caracterizado como um ato contínuo de releitura histórica e reavaliação cultural.
Iniciando-se com a análise dos valores europeus implantados pela dominação espanhola no continente americano, a revisão empreendida por Fuentes remete às raízes do racionalismo ocidental, aplicado à interpretação da História, que tem como base a filosofia iluminista, sobretudo o idealismo hegeliano, para o qual o Estado representa a totalidade ética enquanto promotor da realização concreta da liberdade. Hegel construiu suas teorias históricas a partir da indagação sobre os motivos geradores das paixões que movem os homens e seus interesses particulares. A imagem hegeliana de um universal imperturbável, que emerge da multiplicidade conflitiva do particular, traz vinculada a teoria do povo eleito pela grandeza espiritual. Em sua Fenomenologia do espírito, conclui: "o outro lado do devir do espírito, a história, é o devir que se atualiza no saber, o devir que mediatiza a si-mesmo, — o espírito alienado do tempo" (FE, O Saber Absoluto, p. 311). O sentido que Hegel atribui ao termo alienação refere-se á passagem do individual (em-si) ao universal, compreendendo um processo de (auto) reflexão da mente humana sobre seus próprios limites. Avaliada de modo racional, a História revela-se história "das totalidades", onde predominam o Estado e o espírito nacional, não os indivíduos. Segundo esta definição, os povos que não se organizam em Estados nacionais não têm existência própria, ficando, por isso, fora da história do mundo. Também a interpretação da cultura subordina-se, na filosofia hegeliana, à ideia de alienação ou sacrifício do em-si em favor da consciência de si universal, o mesmo ocorrendo com o papel da linguagem enquanto essência do espírito: ao expressar-se, realiza, transformando a singularidade da consciência de si em consciência para os outros (FE, A Cultura, II).
Karl Marx, crítico de Hegel no século XIX, rebateria este pensamento observando que o grande equívoco do filósofo alemão foi ter tomado o Estado prussiano como essência do Estado. Marx se encarregaria de promover a inversão desta teoria ao considerar os homens como emanação direta de seu comportamento material, o que os torna produtores de suas próprias representações e ideias,. Segundo Marx, que encontra antecedentes em Claude Henri de Rouvroy (conde de Saint Simon) e Charles Fourier, uma História autêntica se faz com indivíduos reais e suas ações.
Assumindo uma postura adversa ao hegelianismo, o qual desconsidera o Novo Mundo por classificá-lo como a-histórico, mas sem se deixar seduzir pelo tom radicalmente opositor do marxismo, Fuentes opta por uma práxis crítica que situa as questões referentes à expressão linguística do pensamento humano em um plano superior às mazelas acumuladas pelos discursos historicista e filosófico (principalmente da Metafísica e da Lógica) ao longo dos três últimos séculos. O resgate do conceito de dialogismo proposto por Mikhail Bakhtin alia-se, em seus ensaios, às teorias de Giambattista Vico (1668-1744), em uma evidente tentativa de construção de um novo posicionamento científico, diante da pluralidade cultural que condiciona as produções humanas, e que encontra seu correlato, no campo das investigações literárias, na conjunção dos conhecimentos da linguística, da filologia, da filosofia da linguagem e da literatura comparada.
Vico aponta a inconsistência do cartesianismo no tratamento dos aspectos históricos, já que a abstração decorrente do método calcado na precisão e na distinção do saber matemático e geométrico impedem o desenvolvimento das ciências ditas da moral. A infixidez das verdades cartesianas, que carecem de credibilidade em sua demonstração, é, segundo Vico, passível de questionamento. Ao abstracionismo panmatematicista defendido pelos cartesianos, o filósofo e filólogo italiano opõe a dinâmica da capacidade humana para criar realidades no ato do conhecimento. A homogeneidade do saber científico que se forjou de Galileu a Descartes e que, aplicada às ciências humanas, viria a transformar-se no sustentáculo do racionalismo ocidental encontra, em Vico, uma contrapartida desconstrutora: ao inserir o pensamento filosófico no campo das realizações culturais, afirma o caráter exterior e heterogêneo necessário ao julgamento científico (crítica), indissociável da arte de inventar (tópica). À supremacia da verdade demonstrativa cartesiana Vico contrapõe o engenho como a faculdade humana de descobrir enquanto cria, faculdade por si só estreitamente relacionada com a noção de verossimilhança intrínseca à poética (cf. Platão, Sof. 265b, "faculdade de produzir").
Se, para Descartes, a História se compõe de uma profusão imprecisa de fatos que inviabiliza o conhecimento verdadeiro, para Vico, ao contrário, a vivência do histórico se origina forçosamente da confluência de todas as manifestações da vontade humana, pelo que nem o historiador nem o filósofo podem ignorar construções do pensamento comumente relegadas pelo ponto de vista científico. Englobando o estudo de mitos, de fábulas e tradições na prática analítica da filosofia, Vico antecipa o procedimento adotado, no século XX, pelos preconizadores da nouvelle histoire, recuperando, assim, para o discurso filosófico, uma feição literária esquecida.
O principal aspecto da filosofia de Vico destacado por Fuentes diz respeito à compreensão do papel da linguagem em sua relação criadora com as demais manifestações da imaginação humana. Vico considerou a expressão linguística desde uma perspectiva mais cumulativa que evolutiva (no sentido de movimento progressivo e regular), que a situa no centro vital do desenvolvimento natural do espírito humano. Observado desde este prisma, o mito (que alcança primazia indiscutível nas obras do escritor mexicano) vê seu significado convencional, de construção fabulosa, minimizar-se diante da emergência de outro sentido, inerente a sua etimologia grega: aquilo que se cria enquanto [daquilo] se fala.
No entender de Vico, a palavra mítica se articula com uma estrutura imanente de significação e conhecimento inexistente na construção silogística. Isto porque, no mito, prevalece a fantasia, designação que no contexto platônico assinala a ação figurativa operada pelo imaginário e, consequentemente, a imagem ou ideia que a partir desta ação se oferece ao espírito. Longe de apresentar-se como uma construção ilógica, a fantasia dá forma e sustenta a coerência do pensamento primitivo (arcaico), como o comprovaram, além de Vico, Marcel Mauss e Claude Lévi-Strauss ao apontar a existência dos universais poéticos. A fantasia desempenha o papel de mediadora entre a memória (ação de relembrar) e o engenho (ato de invenção), procedendo, no interior do imaginário, à reordenação lógica dos fatos e das experiências que geram conhecimento.
Apoiando-se na teoria das três idades, postulada por Vico em Princípios de uma ciência nova (1725), Fuentes associa as modulações do fenômeno literário às transformações operadas na expressão do pensamento humano ao longo de suas variadas épocas histórico-culturais:
1. Idade divina: época da sabedoria poética - predomínio das repúblicas monásticas;
2. Idade heroica: época das virtudes heroicas, na qual a fantasia ainda prevalece sobre a reflexão, não existindo fronteiras entre imaginação e realidade - predomínio das oligarquias;
3. Idade humana: [racionalismo] época da luta de classes.
A estas três idades correspondem, respectivamente, três espécies de línguas, constituídas, de acordo com Vico, em adequação às necessidades expressivas do imaginário sócio-cultural:
a. Hieroglífica: sagrada ou secreta, articulada por gestos mudos, convenientes às religiões, às quais importava mais observá-las do que falar delas; segundo Vico, esta língua tem origem no tempo das famílias, em que os homens haviam ascendido, de modo recentíssimo, à condição humana; foi uma língua muda, de comunicação mediante sinais e caracteres, que mantinham nexos naturais com as ideias que deviam significar;
b. Simbólica: ou seja, por similitudes, comparações, imagens, metáforas e descrições naturais, surgida concomitantemente com as sociedades consolidadas pelos intentos heroicos; língua, segundo Vico, nascida no seio da cultura da violência;
c. Epistolar: formação da língua humana [de configuração eminentemente linguística], com vocábulos convencionados pelos povos; instrumento da instituição das repúblicas populares e dos Estados monárquicos, mas também de difusão das leis para o vulgo, liberando-o do domínio exclusivo da nobreza.
O que Fuentes depreende desta teoria fundada por Vico é a concepção da natureza humana como uma realidade variada e em perpétua mudança, cuja mobilidade constante traz em si, atrelado, o conjunto de criações culturais que se constroem no nível histórico. No capítulo "Tiempo y espacio de la novela - 1. Vico y la Historia", de Valiente Mundo Nuevo (1990), Fuentes ratifica a ideia do filósofo italiano segundo a qual a História, enquanto criação humana, assim como a linguagem, manifesta-se em um ritmo cíclico — corsi (curso/fluxo) e ricorsi (recurso/refluxo) — de projeção espiral, não possibilitando a identidade entre épocas e civilizações, sem que se perca, no entanto, a memória de cada cultura antecedente:
"Los hombres y las mujeres hacen su propia historia y lo primero que hacen es su lenguaje y, en seguida, basados en el lenguaje, sus mitos y luego sus obras de arte, sus costumbres, leyes, maneras de comer, modas, organizaciones políticas, códigos sexuales, deportes, sistemas educativos, todo ello, dice Vico, en flujo perpetuo, todo ello siendo siempre." (VMN, p. 32)
Do acúmulo de experiências tanto positivas como negativas nasce, segundo Vico, o genuíno conhecimento humano, que não descarta a tensão agônica dos contrários. A fantasia fornece a linguagem para a experiência e o conhecimento sem estabelecer categorias, comuns no razoamento científico. A filosofia de Vico apresenta-se, portanto, como um pensamento dinâmico, ele mesmo uma linguagem crítica que, ao ler a História e ler-se a si mesmo, procura preservar a oposição mediadora.
Fuentes encontra nesta lógica auroral da linguagem — denominação conferida por Vico ao fluxo perpétuo da produção cultural humana — o mesmo impulso que move a nova literatura hispano-americana, consciente de seu passado alienado (termo adotado aqui, melhor que nunca, em seu pleno sentido hegeliano): um mundo policultural, do qual esta advém e o qual, ao mesmo tempo, deve representar:
"Negamos lo que habíamos hecho — un mundo policultural y multirracial en desarrollo — y afirmamos lo que no podíamos ser — europeos modernos — sin asimilar lo que ya éramos — indo-afro-ibero-americanos —. El precio político y cultural fue muy alto. Mejor hubiéramos hecho en ler a Vico que a Voltaire." (VMN, p. 34)
À pluralidade linguística, cultural e histórica desvendada pela filosofia de Vico une-se, por fim, na ensaística de Fuentes, a heteroglossia bakhtiniana para a definição do papel da linguagem na atualidade, principalmente a do romance, de construção híbrida e função cognoscitiva já em sua mais autêntica tradição cervantina. Em Geografía de la novela (1993), título por demais sugestivo, Fuentes enfatiza que, no nível teórico, ninguém soube definir melhor esta nova fase do romance do que Mikhail Bakhtin:
"En una era de lenguajes conflictivos — información instantánea, sí, integración económica global también, mucha estadística y escaso conocimiento — la novela es, será y deberá ser uno de esos lenguajes. Pero sobre todo, deberá ser la arena donde todos ellos pueden darse cita. La novela no sólo como encuentro de personajes, sino como encuentro de lenguajes, de tempos históricos distantes y de civilizaciones que, de otra manera, no tendrían oportunidad de relacionarse." (p. 33)
Neste novo espaço e tempo, onde as fronteiras se dissipam e as geografias se confudem (Cortázar, como Cervantes, já o sabia), as linguagens da literatura e da crítica dialogam, igualmente, em suas divergências. A crítica da escritura é, também, crítica da leitura, permitindo que a história da literatura seja compreendida como um processo de inflexão cultural, conforme a definiu Alfonso Reyes — não existe criação sem tradição e se o "novo" não é mais do que uma inflexão de uma forma anterior, toda a cultura ocidental pode ser traduzida em termos latino-americanos e vice-versa (EL, p. 80-81) —, ou, ainda, segundo Jauss, como um processo de recepção e de produção estéticas que se opera na atualização de textos literários pelo leitor que os lê, pelo crítico que sobre eles reflete e pelo próprio escritor, incitado a produzir e — acrescentemos — a repensar o con-texto (em) que escreve (ER, p. 48). Assim sendo, o meta-relato, característico do romance e que se autocontempla em sua condição de produção histórica para questionar a própria História, converte-se em polinarrativa, polissêmica e pluricultural, mas não menos autoconsciente.
No dizer de Salman Rushdie, a História é sempre ambígua. No dizer de Fuentes, Rushdie encarna perfeitamente a definição bakhtiniana de nosso tempo como uma era de linguagens em luta. Em ambos, Vico revive no cerne da consciência cultural contemporânea:
"La geografía de la novela nos dice que nuestra humanidad no vive en la helada abstracción de lo separado, sino en el pulso cálido de una variedad infernal que nos dice: No somos aún. Estamos siendo. Esa voz nos cuestiona, nos llega desde muy lejos pero también desde muy adentro de nosotros mismos. Es la voz de nuestra propia humanidad revelada en las fronteras olvidadas de la conciencia. Proviene de tempos múltiples y de espacios lejanos. Pero crea, con nosotros, el terreno común donde los negados pueden juntarse y contarse las historias prohibidas por los negadores." (GN, p. 224)
Bibliografía
BAKHTIN, M.M. The dialogic imagination. Four essas. Ed. Michael Holquist. Transl. by Caryl Emerson and Michael Holquist. Austin, University of Texas Press, 1994
FUENTES, Carlos. Geografía de la novela. Madrid, Alfaguara, 1993. [GN]
______. Valiente Mundo Nuevo. Épica, utopia y mito en la novela hispanoamericana. México, FCE, 1992 [VMN]
HEGEL, G.W.F. Phénoménologie de l'esprit. Trad. de Jean Hyppolite. Paris, Aubier, 1977 [FE]
JAUSS, Hans Robert. Pour une esthétique de la réception. Trad. de l'allemand par Claude Maillard. Préf. de Jean Starobinski. Paris, Gallimard, 1991 [ER]
REYES, Alfonso. La experiencia literaria. 3 ed. México, FCE, 1989 [EL]
VERENE, Donald P. Vico's science of imagination. Ithaca, Cornell University Press, 1984
VICO, Giambattista. Princípios de uma ciência nova. Acerca da natureza comum das nações. Sel., trad. e notras: Prof. Dr. Antonio Lázaro de Almeida Prado. São Paulo, Nova Cultural, 1988 (Série Os Pensadores)